2004-11-28

Retórica e Democracia




Para a compreensão da relação entre Retórica e Democracia na Grécia Antiga.

A vida pública ou política era de certo modo um luxo que estava reservado aos que podiam gozar de uma subsistência garantida. Mulheres, metecos e escravos não tinham uma vida política. E aqui coloca-se a questão sobre a abrangência da democracia ateniense. Com efeito, apenas 10% da população eram cidadãos. A democracia ateniense era de algum modo uma aristocracia alargada.

Fustel de Coulanges dá-nos um retrato muito pormenorizado do dia a dia de um cidadão ateniense no gozo e cumprimento dos seus direitos e deveres políticos e vemos que é uma vida muito trabalhosa.

«Espanta verificar todo o trabalho que esta democracia exigia dos homens. Era governo muito trabalhoso. Vejamos em que se passa a vida de qualquer ateniense. Determinado dia, o ateniense é chamado à assembleia do seu demo e tem de deliberar sobre os interesses religiosos ou financeiros dessa pequena associação. Um outro dia, este mesmo ateniense está convocado para a assembleia da sua tribo; trata-se de regular uma festa religiosa, ou de examinar as despesas, ou de fazer decretos, ou ainda de nomear chefes e juízes. Exactamente três vezes por mês torna-se preciso que assista à assembleia geral do povo, e não tem o direito de faltar. Mas a sessão é longa, porque o ateniense não vai à assembleia somente para votar. Chegado pela manhã, exige-se que o ateniense ali permaneça até hora avançada do dia a ouvir os oradores. Não pode votar senão tendo estado presente desde a abertura da assembleia, e tendo ouvido todos os discursos. (...) O dever do cidadão não se limitava a votar. Quando chegava a sua vez, também devia ser magistrado no seu demo ou na sua tribo. Em média, ano sim, ano não, era heliasta, isto é, juiz, passava todo esse ano nos tribunais, ocupado a ouvir os litigantes e a aplicar as leis. Quase não havia em Atenas cidadão que não fosse chamado duas vezes na sua vida a fazer parte do senado dos Quinhentos; então, durante um ano, todos os dias se sentava desde manhã até à noite, recebendo os depoimentos dos magistrados, fazendo-os prestar as suas contas, respondendo aos embaixadores estrangeiros, redigindo as instruções dos embaixadores atenienses, examinando todos os negócios que deviam ser submetidos ao povo, e preparando todos os decretos. Enfim, o ateniense podia ser magistrado da cidade, arconte, estratego, astínomo, quando a sorte ou o sufrágio o indicava. Vê-se quão pesado encargo era o de ser cidadão de qualquer Estado democrático, porque correspondia a ocupar em serviço da cidade quase toda a sua existência, pouco tempo lhe restando para os trabalhos pessoais e para a sua vida doméstica. Por isso, muito justamente dizia Aristóteles não poder ser cidadão aquele homem que necessitasse de trabalhar para viver. Tantas eram as exigências da democracia. O cidadão, como o funcionário público dos nossos dias, devia pertencer inteiramente ao Estado. Na guerra, dava-lhe o seu sangue; durante a paz, o seu tempo. Não era livre para descurar dos negócios públicos por se ocupar com mais cuidado dos seus próprios. Pelo contrário, devia descurar os seus, para trabalhar em proveito da cidade. Os homens passavam a sua vida uns a governarem os outros. A democracia não podia existir senão sob a condição de trabalho incessante para todos os seus cidadãos. Por pouco que afrouxasse, ela acabaria pouco a pouco por perecer ou por se corromper. »
É neste dia a dia da vida política que o cidadão vive num mundo marcado pela eloquência ( léxis). As assembleias são palco de intensos debates. Todo o homem podia falar sem distinção de fortuna, nem de profissão, mas precisava de provar estar no gozo dos seus direitos políticos, não ser devedor ao Estado, ser de costumes puros, estar legitimamente casado, possuir bens de raiz na Ática, haver cumprido todos os seus deveres para com seus pais, ter feito todas as expedições militares para as quais fora escolhido, e provar não ter deixado no campo, em nenhum combate, o seu escudo.

Os atenienses como nos diz Tucídides, não acreditavam que e palavra prejudicasse a acção. Sentiam, pelo contrário, a necessidade de se esclarecerem. A política já não era, como no regime precedente, negócio de tradição e de fé. Era preciso reflectir e ponderar sobre as razões. A discussão era indispensável, porque sendo toda a questão mais ou menos obscura, só a palavra podia iluminar a verdade, e o povo ateniense queria que cada negócio lhe fosse apresentado sob todos os seus diferentes aspectos e lhe mostrassem claramente os prós e os contras. Considerava bastante os seus oradores. O povo fazia mais ainda: escutava-os; não poderemos, portanto, apresentar este povo como multidão turbulenta ou barulhenta. Pelo contrário, a sua atitude era correctíssima; o poeta cómico apresenta-o escutando boquiaberto, imóvel nos seus bancos de pedra. Os historiadores e oradores descrevem-nos muito frequentemente estas reuniões populares; quase nunca os vemos a interromperem os oradores; quer esse orador seja Péricles, ou Cléon, Ésquino ou Dernóstenes, o povo continua atento; e, quer o lisonjeiem quer o repreendam, escuta. Deixa exprimir as mais opostas opiniões, com louvável paciência. Algumas vezes murmúrios, mas nunca gritos nem assuadas. O orador, diga o que disser, pode sempre chegar ao fim do seu discurso.
Como se vê, retórica e democracia implicavam-se mutuamente e constituíam a esfera pública de Atenas



[Este texto foi obtido a partir de um texto-Web de António Fidalgo da Universidade da Beira Interior]

AB