2005-03-08

Exercício 4 - Textos "Descartes"


I – René Descartes

«Agora fecharei os olhos, taparei os ouvidos, porei de parte todos os sentidos, apagarei também do meu pensamento todas as coisas corpóreas, ou pelo menos, porque isto é quase impossível, não as tomarei em conta, por inanes e falsas, e, dialogando só comigo próprio e inspeccionando-me mais intimamente, procurarei tornar-me o meu próprio eu progressivamente mais conhecido e familiar. Eu sou uma coisa que pensa, quer dizer, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente. Porque como atrás notei, embora as coisas que sinto ou que imagino não sejam possivelmente nada fora de mim, todavia aqueles modos de pensar que chamo sensações e imaginações existem em mim, de facto, enquanto são certos modos de pensar.
E com estas poucas palavras, enumerei tudo o que verdadeiramente sei, ou pelo menos, tudo aquilo que até agora notei que sabia. Neste momento vou considerar com mais exactidão se em mim há outros conhecimentos que não tomei em conta até agora. Estou certo de que sou uma coisa que pensa. Mas sei o que se requer para que eu tenha a certeza de alguma coisa? (…) Parece-me que já posso estatuir como regra geral que é absolutamente verdadeiro tudo aquilo que compreendo clara e distintamente.
Todavia admiti anteriormente como absolutamente certas e manifestas muitas coisas que, entretanto, depreendi depois serem duvidosas. Que coisas foram estas? A Terra, o Céu, os Astros, e todas as outras que recebi pelos sentidos. (…) E ainda agora não contesto que essas ideias estão de facto em mim. Mas outra coisa era o que eu então afirmava que compreendia claramente, pelo hábito de crer, embora na verdade não compreendesse: que havia certas coisas fora de mim, de que procediam estas ideias e às quais eram totalmente semelhantes. E era nisto que eu me enganava. (…) O erro principal e mais frequente que se pode descobrir nos juízos consiste em que afirmo que as ideias que estão em mim são semelhantes ou conformes a certas coisas que estão fora de mim. Se considerasse as próprias ideias como certos modos do meu pensamento e nãos as referisse a qualquer outra coisa, dificilmente me poderiam oferecer matéria de erro.
Porém, destas ideias parece-me que umas são inatas, outras adventícias, outras feitas por mim próprio. Porque que eu compreenda o que é «coisa», o que é «verdade», o que é «pensamento», parece-me que reside na minha própria natureza e que o não recebo de outra parte. Mas que eu ouça agora um ruído, que veja o Sol, que sinta o calor das chamas, isto, segundo julguei até agora, procede de certas coisas situadas fora de mim. E, por último, as Sereias, os Hipogrifos, e seres semelhantes, são inventados por mim próprio. Mas também posso crer que as ideias são todas adventícias, ou todas inatas, ou todas factícias, uma vez que ainda não descobri claramente a sua origem verdadeira.

René Descartes; III Meditação in Meditações da Filosofia Primeira.


I I– René Descartes

«13. Em que sentido se pode dizer que, ignorando Deus, não se pode ter conhecimento certo de nada.

Quando o pensamento, que se conheceu a si mesmo deste modo, não obstante continuar a duvidar das outras coisas, usa de circunspecção para estender mais além o seu conhecimento, encontra, logo de início, em si, as ideias de várias coisas.
Enquanto as contempla simplesmente, sem assegurar que haja algo exterior a si que seja idêntico a essas ideias, mas também sem o negar, não corre o perigo de se enganar.
O pensamento encontra também algumas noções comuns a partir das quais compõe demonstrações que o convencem de forma tão absoluta, que não consegue duvidar da sua veracidade enquanto se aplica nessa actividade. Por exemplo, ele contém em si as ideias de números e de figuras; possui também, entre as suas, noções comuns «que, se juntarmos partes iguais a outras partes iguais, os todos serão iguais» e muitas outras tão evidentes como esta, pelas quais é fácil de demonstrar que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois rectos, etc.
Ora, enquanto o pensamento se apercebe destas noções e da ordem de onde ele deduziu esta conclusão ou outras semelhantes, está seguro da veracidade delas. Contudo, como não poderá pensar nisso sempre com tanta atenção, quando acontece lembrar-se de alguma conclusão sem ter em conta a ordem a partir da qual ela pode ser demonstrada, se, entretanto, pensar que o Autor do seu ser pode tê-lo criado com uma natureza tal que ele se equivoca em tudo o que lhe parece evidente, terá, então, um motivo justo para desconfiar da veracidade de tudo aquilo que não percebe de forma distinta e para achar que não poderá ter qualquer ciência até conhecer aquele que o criou.»
René Descartes; Princípios da Filosofia