2005-03-08

Exercício 4 - Textos "Locke" e "Hume"

III – John Locke
«A grandeza específica, o número, a figura e o movimento das partes do fogo ou da neve estão realmente neles, quer os sentidos de alguém os percebam ou não; e podem consequentemente ser chamadas qualidades reais, porque elas realmente existem naqueles corpos. Mas a luz, o calor, a brancura, ou a frialdade, não são mais reais neles do que a doença ou a dor são no maná. Se afastarmos delas as sensações, não deixarmos os olhos ver a luz ou as cores, nem os ouvidos ouvir os sons, não deixar o paladar provar, nem o nariz cheirar, e tudo, cores, gritos, odores, e sons, como são ideias, desaparecem e cessam e são reduzidas à sua causa; isto é, grandeza, figura e movimento das partes.»

IV – John Locke
«Admitamos pois que, na origem, a alma é como que uma tábua rasa, sem quaisquer caracteres, vazia de ideia alguma: como adquire as ideias? Por que meio recebe essa imensa quantidade que a imaginação do homem, sempre activa e ilimitada, lhe apresenta com uma variedade quase infinita? Onde vai ela buscar todos esses materiais que fundamentam os seus raciocínios e os seus conhecimentos? Respondo com uma palavra: à experiência. É essa a base de todos os nossos conhecimentos e é nela que assenta a sua origem. As observações que fazemos no que se refere a objectos exteriores e sensíveis ou as que dizem respeito às operações interiores da nossa alma, que nós apercebemos e sob as quais reflectimos, dão ao espírito os materiais dos seus pensamentos. São essas as duas fontes em que se baseiam todas as ideias que, de um ponto de vista natural, possuímos ou podemos vir a possuir.
E, primeiramente, sendo os sentidos excitados por certos objectos exteriores, fazem entrar na alma várias percepções distintas das coisas, segundo as diversas maneiras porque estes objectos agem sobre os nossos sentidos. É assim que adquirimos as ideias que temos do branco, do amarelo, do quente, do frio, do duro, do mole, do doce e do amargo, e de tudo o que denominamos qualidades sensíveis. Direi que os nossos sentidos fazem entrar todas estas ideias na nossa alma, pelo que me parece que eles fazem entrar objectos exteriores na alma, o que produz nela estas espécies de percepções. E como esta grande fonte da maior parte das ideias que nós temos depende inteiramente dos sentidos e por meio deles se comunica ao entendimento, chamo-a sensação.
A outra fonte de que o entendimento vem a receber ideias é a percepção das operações da nossa alma sobre as ideias que recebeu pelos sentidos: operações que, tornando-se o objecto das reflexões da alma, produzem no entendimento uma outra espécie de ideias, que os objectos exteriores não poderiam ter-lhe fornecido: tais são as ideias do que chamamos aperceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer, querer e todas as diferentes acções da alma, de cuja existência estamos plenamente convencidos porque as encontramos em nós mesmos e por intermédio das quais recebemos ideias tão distintas como as que os corpos produzem em nós quando vêm excitar os nossos sentidos. Eis uma fonte de ideias que cada homem tem sempre em si mesmo; e embora esta faculdade não seja um sentido, porque nada tem a ver com os objectos exteriores, aproxima-se bastante dele, e o nome de sentido interior não lhe ficaria mal. Mas como chamo à outra fonte das nossas ideias sensação, chamarei a esta reflexão, porque por seu intermédio a alma não recebe senão as ideias que adquire reflectindo sobre as suas próprias acções.
John Locke, Investigação sobre o Entendimento Humano.

V – David Hume
«Suponham que um homem, se bem que dotado das mais poderosas faculdades da razão e da reflexão, é subitamente transportado para este mundo. Certamente notaria de imediato, uma constante sucessão de objectos, um acontecimento seguindo-se a outro; mas, seria incapaz de se aperceber de algo diferente. Em primeiro lugar, seria incapaz de chegar à ideia de causa e de efeito através de qualquer raciocínio, porque as capacidades específicas que realizam todas as operações naturais nunca são evidentes aos sentidos; e não é legítimo concluir, somente porque um acontecimento precede um outro numa única ocasião, que um é a causa e o outro é o efeito. A sua ligação pode ser arbitrária e acidental. Não há razão para inferir a existência de um a partir do aparecimento do outro. Em resumo: um homem como esse, sem outra experiência, nunca faria conjecturas ou raciocínios acerca de qualquer questão de facto; não estaria seguro de nada, excepto do que está imediatamente presente à sua memória e aos seus sentidos.
Suponham ainda que esse homem adquiriu mais experiência e viveu tempo suficiente no mundo para ter observado a ligação constante entre objectos e acontecimentos habituais, o que resulta dessa experiência? Ele infere imediatamente a existência de um dos objectos do aparecimento do outro. Todavia, não adquiriu, através de toda a sua experiência qualquer ideia, qualquer conhecimento do poder secreto pelo qual um dos objectos produz o outro, e não é através de qualquer exercício da razão que ele é levado a tirar esta conclusão. Mas é sempre levado a tirá-la; e, mesmo que se convencesse que o seu entendimento não tem qualquer papel na operação, prosseguiria, no entanto, no mesmo fluxo de pensamento. (…)
Nenhuma impressão trazida pelos sentidos pode originar a ideia de necessidade. Não há outra impressão relacionada com o facto que presentemente nos ocupa, excepto a tendência (…) de passar de um objecto à ideia de um outro objecto que habitualmente lhe está associado. Essa é, portanto, a essência da necessidade. Em resumo: a necessidade é algo que existe no espírito, não nos objectos. É-nos impossível conceber acerca disso uma ideia, (…) se a considerarmos como uma qualidade dos corpos. (…) A simples visão de dois objectos ou de duas acções, mesmo se ligados, nunca nos pode dar a ideia de um poder ou de uma ligação entre eles; que essa ideia provém da repetição da sua união; que a repetição nada revela ou produz nos objectos, mas que apenas actua sobre o espírito, por meio da transição habitual que provoca; que essa transição habitual é, então, idêntica ao poder e à necessidade que, consequentemente, são qualidades das percepções e não dos objectos, sendo interiormente sentidas pela alma e não percepcionadas nos corpos externos.»
David Hume; Investigação acerca do Entendimento Humano.