2005-01-31



A laranja mecânica
(A clockwork orange)
(Grã Bretanha, 1971)
Stanley Kubrick (1928 – 1999)
Duração: 137 minutos.
Intérpretes: Malcolm McDowell (Alex DeLarge), Warren Clarke (Dim), James Marcus (Georgie), Patrick McGee (M. Alexander), Michael Bates (chefe dos guardas), Carl Duering (Dr. Brodsky), Miriam Karlin ("catwoman"), Aubrey Morris (Mr. Deltoïd), Godfrey Quigley (capelão da prisão), Anthony Sharp (ministro).
Argumento: Stanley Kubrick segundo o romance de Anthony Burgess, "A clockwork orange".
Música: Walter Carlos: Original; L.van Beethoven: "9ª sinfonia"; Edward Elgar: "Pompa e circunstância marchas 1 e 4"; Giacomo Rossini: "La gazza ladra" e "Guilherme Tell"; Terry Tucker :"Overture to the Sun"; Henry Purcell: "Música para o funeral da rainha Mary"; Jam Yorkston: "Molly Malone"; Arthur Fried e Nacio Herb Brown: "Singing in the rain"; Rimsky-Korsakov: "Sheherazade"; Erika Heigen: "I want to marry a lighthouse keeper".

AVISO:
Este filme aborda o tema da violência. Violentamente!!!

É sem dúvida um filme pessimista. Todos os ângulos o revelam. E é por isso que é um filme que antecipa o nosso tempo. Retratamo-nos nele num retrato sépia que a idade não consome e, como a memória de Auschwitz, nos enoja como o fel. Quem são estas personagens que povoam os nossos sonhos? Que princípio dinâmico é este que arrasta a consciência? Que espelho é este que nos reflecte horrorizados a saborear o desejo da vingança? Onde germinou a semente cruel desta antevisão do extermínio?

Trinta e quatro anos depois a violência do filme acorda-nos. Como um “tratamento Ludovico”, força-nos as pálpebras do espírito. Vemos e envergonhamo-nos da alucinante voragem do nosso tempo. Percorremos os jornais de hoje e encontramo-la, a Laranja, quotidianamente. Ela aí está, como então, na inquietação juvenil fertilizando a intolerância, na hipocrisia oficial sulcando nas mentes os labirintos de fumo, na maquinação monstruosa que molda, martiriza e extingue a borboleteante e ténue chama da esperança.
No filme há sexo. Sem afecto. Violência. Sem razão. E há a música de Beethoven, já surdo, escrita com o coração. E a de outros que registaram para os nossos sentidos, todas as emoções humanas. A música como chave mestra abre e fecha todas as portas. Talvez abra outras.
Não há propostas porque o “método Ludovico”, ou o exorcismo científico do século do pragmatismo técnico, não parece curar os mais renitentes males do tempo. Como seria a sociedade subordinada ao “tratamento”, sem qualquer instinto de agressividade? A ciência ao serviço do pessimismo, pressente-se, não pode melhorar a humanidade. Ou estaremos enganados?
AB

2005-01-18

2001: Odisseia no Espaço

2001: Odisseia no Espaço
1968 – EUA / UK
Filme estreado no dia 3 de Abril de 1968
Stanley Kubrick (1928 – 1999)
Há 37 anos, no coração dos revolucionários anos sessenta do século passado, o cinema viveu um dos seus mais gloriosos momentos. Pela mão de Stanley Kubrick (1928 – 1999) e com o patrocínio das artes dos dois mais influentes países do mundo anglo-saxónico, os Estados Unidos da América do Norte, cuja juventude se ia perdendo pelas florestas orientais, num acto de suspeitíssima eticidade, e o Reino Unido da Grã-Bretanha, a braços com a revolta dos seus jovens sedentos de paz e amor, em luta contra o sufoco da pardacenta moral de outras sombrias “florestas”, uma jóia do cinema é cuidadosamente burilada. Com tanto cuidado que lançou o seu brilho intenso até aos alvores do século seguinte, se não até à eternidade, como é apanágio das autênticas obras de arte.

Sobre este filme diria, recentemente, Francisco Ferreira, comentador especializado, ao serviço do jornal Expresso: “É ainda o maior de todos os filmes de ficção científica. Faça-se silêncio, portanto. Obra-prima absoluta”.

Em contraposição (Solaris de Tarkovski), em continuação, por referência, ou simplesmente de memória, esta “obra-prima”, expressa ou subliminarmente, tem estado presente no imaginário da filmografia de ficção científica destas quase quatro décadas de uma arte plena e vigorosa, ainda em crescendo, como é o caso do cinema.

Falo de ficção científica quando, provavelmente, deveria falar de outra coisa, inominável, mas mais do que ciência, mais do que religião, mais do que fantasia. Devo talvez falar de linguagem, de existência, de absoluto, de tudo e de nada acerca da mesma coisa, da circularidade plena da vida do espírito. Devo talvez falar de especulação e de vontade. Ou da vontade de especulação e da vontade de vontade. Da natureza da Grande Ficção, do universal Guião da Existência, do Tempo e da Luz. Devo talvez falar da incómoda angústia da insignificância e do significado arcano do amor pelo saber. Da Dúvida. Que palavra bem dita: a Dúvida!

Há 37 anos um vigoroso Kubrick, cheio de luz a inundar-lhe a fronte e lançando histericamente sombras significantes diluindo-as na película, instalou o sobressalto da dúvida megalítica, mesmo a propósito, na rotineira, mortiça e monstruosa cosmografia da História. E disse!... e o que não disse é ainda mais ruidoso neste filme.

Deve ser visto! Para que se possa falar desta jóia e apreciar em comum o seu brilho, o brilho eterno e fortificante da dúvida.
E. S. Bombarral, 18 de Janeiro de 2005
AB