Quando lemos um texto de filosofia devemos concentrar a nossa atenção sobre os seguintes aspectos:
· os problemas
· as teorias
· os argumentos
Os bons filósofos costumam começar por enunciar os problemas que estão a procurar resolver nas suas obras. É o que faz Descartes, que declara logo na primeira meditação que está preocupado com o problema do fundamento do conhecimento. Nos diálogos de Platão também é costume surgir logo após o preâmbulo dramático o enunciado do problema, muitas vezes uma pergunta de Sócrates, como «O que é a piedade?»
Mas os pormenores dos problemas filosóficos são subtis e intrincados. É fácil de ver que o fundamento do conhecimento é o problema que Descartes procura resolver nas Meditações. Mas em que consiste exactamente este problema? É aqui que o conceito de «formulação» tem de ser introduzido. Quando eu andava no liceu usava-se muitas vezes a expressão «explicar pelas suas próprias palavras». Esta é uma boa formulação do que é a formulação.
A formulação de um problema filosófico (...) é enunciar esse problema de forma clara, organizada e pormenorizada — claro que a melhor forma de o fazer é no papel, mas podemos tentar fazê-lo, de forma mais informal, mesmo quando estamos a ler, ou oralmente, nas aulas e com os amigos.
Quando formulamos um problema filosófico devemos estar preocupados com os seguintes aspectos:
· Qual é a sua formulação exacta?
· Como se origina o problema?
· Quais são as suas consequências?
A formulação correcta de um problema, de uma teoria ou de um argumento é o indício mais seguro de que o autor da formulação compreendeu o que está a dizer.
Numa boa formulação as relações lógicas têm de se tornar claras. As suas subtilezas têm de ser cuidadosamente expostas, as suas obscuridades clarificadas, as suas ambiguidades desambiguadas. O inverso disto é a paráfrase e as citações superabundantes, óptimas para dar volume e evitar trabalho (no meu tempo chamava-se "palha" a isto).
Se não percebemos muito bem uma certa passagem, o melhor é citá-la: quem nos lê ficará com a sensação que é estúpido porque não percebe algo que o autor deve ter percebido, caso contrário não teria citado. Esta estratégia, claro, é desonesta. É preferível escrever 5 linhas claras onde se explica por que razão não se percebeu uma passagem do que encher 5 páginas obscuras onde se cita a passagem e mais 30 comentadores e outras tantas paráfrases, ocultando o facto crucial de não se ter percebido.
Por vezes, a expressão clara de uma incompreensão tem valor filosófico porque essa incompreensão pode ela própria ter valor filosófico: a passagem em causa pode ser filosófica ou logicamente incongruente. Ao fazê-lo, o estudante mostra que leu com atenção crítica; ao limitar-se à paráfrase e à citação bacoca o estudante mostra que se limitou a prosseguir uma função mecânica e acrítica — o contrário do espírito crítico da filosofia.
(...)
As origens e as consequências que nos interessam enquanto estudantes de filosofia são, claro, as origens e consequências filosóficas. Por exemplo, depois de formularmos de forma correcta o problema do conhecimento que Descartes enuncia no início da primeira meditação, podemos perguntar: que razões o levam a pensar que o problema do fundamento do conhecimento existe realmente? Não será apenas uma fantasia? Como se dá origem ao problema? Na verdade, uma das reacções negativas mais comuns em relação à filosofia é o menosprezo pelos seus problemas. Mas uma coisa é menosprezar sumariamente um problema como irrelevante ou mal formulado ou como o resultado de uma confusão conceptual; outra coisa — e isto é já um trabalho filosófico — é elaborar essa reacção e mostrar que o problema X que o filósofo Y levanta resulta de um erro. Na verdade, grande parte do trabalho dos filósofos consiste em tentar mostrar que os outros filósofos cometeram esse tipo de erros.
Perceber as origens de um problema filosófico é perceber de que depende a sua existência. (...) Claro que não se espera que um estudante de filosofia, ao tentar descobrir as origens dos problemas filosóficos que está a ler, tenha a mesma capacidade crítica que têm os filósofos altamente especializados. Mas têm de começar a ter alguma dessa capacidade crítica. E a melhor coisa a fazer para desenvolver uma capacidade é treiná-la pacientemente a partir de exercícios simples.
Quando procuramos as origens de um problema filosófico perguntamo-nos como é que as coisas têm de ser para que aquele problema exista e o que aconteceria se as coisas fossem ligeiramente diferentes. Não é importante, inicialmente, se é para nós claro que as coisas são de facto como têm de ser para que se levante tal problema; mas é importante perceber claramente que para se levantar tal problema as coisas têm de ser desta maneira e daquela. Mas de que coisas se trata? Não se trata, com certeza, de dados acerca da iliteracia dos portugueses, ou da análise do trabalho dos jornalistas portugueses. Trata-se, sim, de certos aspectos da natureza da linguagem, do mundo, e dos nossos conceitos acerca destas duas coisas. Por exemplo: que conceito de conhecimento e de linguagem tem Descartes de ter para que se levante o problema do fundamento do conhecimento?
Tudo quanto disse em relação às origens se aplica às consequências. Neste caso, temos de nos perguntar o que somos obrigados a aceitar se aceitarmos uma certa formulação de um certo problema. Se aceitarmos, como Descartes, que existe um problema com o fundamento do conhecimento, o que se segue daí? Poderemos continuar a conceber a ciência, por exemplo, como concebíamos antes? Ou não? E a religião? Se o conhecimento precisa de fundamentos, que temos de fazer para os encontrar? E qual será o método para o fazer?
Extraído, com a devida vénia, do artigo «Como Estudar Filosofia», do Professor Desidério Murcho,
AB10