NOITE de TEATRO
Nas noites do dia 9 e 10 de Maio, numa organização do grupo de Filosofia, fomos ao Teatro da Cornucópia (eramos cerca de 150) . A peça: Don Carlos, Infante de Espanha, de Friedrich Schiller.
Como a peça levanta várias questões de natureza filosófica, nomeadamente no âmbito dos valores religiosos, que entretanto estudamos, aqui fica uma pequena nota sobre a dita.
Schiller escreveu a primeira versão desta obra dois anos antes da Revolução Francesa - e o emblema tricolor: Liberdade, Igualdade, Fraternidade - estão bem presentes durante toda a trama.
A obra situa-se no Tempo de Filipe II e o Espaço é a Espanha e o grande Império Espanhol, embora mais propriamente, a corte do monarca.
O encenador decidiu apresentar um espaço de cena aberto, de uma afirmativa nudez de objectos, vazio, amplo, donde as cores se ausentaram, excluindo o preto e o cinza e também algum branco nas vestes das personagens. A própria mobília mal sobressaía, embutida que estava - tudo nos conduzia aos universos interiores e às suas lutas, não nos possibilitando a distração visual. Toda esta lisura contrastaria com o colorido e o pleno das lutas interiores e intersubjectivas que se foram desenrolando.
Para lá do que se apresentava como evidente ( a paixão inconveniente do Infante pela madrasta, outrora sua noiva prometida e agora esposa de seu pai), outras lutas, dicotomias e conflitos estão presentes na obra.
Para além do despojamento já falado, a Cena surgia - assim pareceu - como um Templo Maçónico: o xadrez do chão - o claro e o escuro, o positivo e o negativo, sempre presente nas Lojas; as esferas que podem indicar as órbitas dos corpos celestes, as influências externas aos indivíduos, o destino, a grandeza e a pequenez do Homem e de cada um - uma esfera era muito grande e outra muito mais pequena; estas esferas fazem ainda lembrar os cubos de pedra, sempre no número de dois, igualmente presentes no templos das fraternidades maçónicas e que simbolizam o Homem em bruto (cubo imperfeito) e o Homem já trabalhado, aperfeiçoado (cubo perfeito).
Esta simbólica não será de todo extemporânea, visto que os ideais da Revolução Francesa, histórica e inequivocamente, se ligam à maçonaria.
A luz aparecia também como fundamental, assim como o jogo das portas que estava intimamente unido ao jogo de luz - outra simbólica muito cara às fraternidades iniciáticas -maçónicas.
Para lá destas pistas, toda a peça gira à volta de dicotomias e dilemas (lembras-te dos valores éticos?). Realçamos no entanto, as dicotomias não tanto pessoais, mas as históricas, civilizacionais e ideológicas: O Novo Mundo, as Novas Ideias simbolizados pelos Jovens - o Infante, o seu amigo dedicado, o Marquês de Posa, a Rainha, e o Mundo Antigo e decrépito, perseguidor do novo ideário que é personificado pelos Velhos - o Rei, a Corte, o Inquisidor.
Esta dicotomia manifesta-se ainda na oposição entre os novos ventos do Luteranismo e da Reforma, do Livre Exame, do Livre Pensamento, acarinhados pelo Marquês de Posa, e o Catolicismo opressor e opressivo do Rei e do Inquisidor. Esta mesma luta está bem patente na peça a que assistimos quer na figura do grande amigo do Infante, Rodrigo, quer na referência às lutas revoltosas dos Países Baixos - a Flandres - onde os Movimentos Reformistas: luteranos, calvinistas e anabaptistas - se opunham cada vez mais à coroa de Espanha e ao Bispo de Roma.
A peça acaba com a morte do Novo (novos: Rodrigo, Infante, Rainha) perseguido pelo Antigo (velhos: Monarquia e Igreja).
Como vemos, as coisas podem 'desembrulharem-se' - desenvolverem-se - por camadas. Isto já não é novidade para quem estuda filosofia! Há que, por isso, manter sempre o espírito crítico, tal como a obra a que assistimos encenada também o faz em relação às temáticas acima faladas e outras.
É também importante manter uma crítica da crítica, é importante ter sempre em mente que o que é dito - escrito, falado, representado, pintado, dançado, sentido - é sempre uma versão, não é nunca a realidade pura, por isso sujeita a múltiplas interpretações e discussões.
Dado o seu ideário, o autor escolhe a Monarquia e a Igreja como protótipo da opressão, inimigas do Homem e da Liberdade, mas quer o regime político em causa, quer a religião, não detêm exclusividade, real ou atribuída, dos 'crimes' em questão - basta lembrar que alguns dos maiores crimes cometidos contra a humanidade aconteceram, e acontecem hoje mesmo, por parte de regimes que se propuseram, precisamente, libertar o Homem das correntes opressoras que são abordadas na peça.
No fim, e no fundo, ficamos sempre com o Homem, com as suas interrogações, as tentativas de resposta e os seus ensaios para se compreender e se tornar melhor e mais feliz. É aqui que a Filosofia se situa : questiona, busca e rebusca, apela ao pensar crítico, desenvolve e alimenta a paixão da busca da razão de ser das coisas.
Excelente a Obra. Excelentes os Actores.